Em 1943, Antonio Candido, um dos mais importantes críticos literários da história do país, iniciou a publicação de colunas na Folha de S.Paulo. O primeiro artigo, chamado “Ouverture“, fazia uma reflexão sobre o trabalho da crítica, e estabelecia os critérios para a futura atuação do autor naquele espaço. A partir desse texto — extraindo dele algumas perguntas —, desenvolvi uma série de entrevistas aqui no blog com críticos literários brasileiros.
Começo esse ciclo de conversas com o colega Rafael Rodrigues, escritor e resenhista — mais isso do que crítico, ele frisa, explicando os motivos dessa diferenciação. Rafael colaborou com Bravo!, Brasileiros, Conhecimento Prático: Literatura, Suplemento Literário de Minas Gerais, Suplemento Pernambuco e Rascunho, tendo sido também colaborador e editor-assistente do Digestivo Cultural (posto em que o sucedi). Como escritor, publicou O escritor premiado e outros contos (2011) e Mais um para a sua estante (2017). Mantém o blog Paliativos e a revista digital Outros Ares.
O que é a crítica para você?
A crítica, para mim, é uma espécie de arte. Assim como escrever uma obra literária, fazer crítica demanda tempo e bagagem. Não me considero um crítico literário, muito embora eu já tenha feito — e ainda faça — crítica literária. Meu foco sempre foi a resenha, então me considero mais um resenhista.
Acho necessário fazer uma diferenciação entre a crítica e a resenha, porque me parece que há uma certa confusão em relação as duas atividades. A diferença entre elas, a meu ver, está na profundidade e na intenção. Enquanto o resenhista pode ficar restrito a apenas analisar uma determinada obra e recomendá-la ou não ao seu leitor, o crítico vai muito mais além. O crítico analisa não apenas uma obra, mas tudo o que a cerca: seu contexto histórico, sua linguagem, suas influências, o lugar que essa obra ocupa dentro da trajetória de seu autor… Tenho um profundo respeito pela crítica, e a considero uma das atividades mais nobres. Ela não pode ser confundida com o resenhismo, ou mesmo com o ensaísmo literário — digo isso sem a menor intenção de menosprezar essas vertentes, é bom deixar claro.
No campo da crítica, qual a sua ética?
Sem querer parecer pedante: meu objetivo, minha ética, é ser verdadeiro — tanto ao fazer crítica quanto ao fazer resenhas de livros. É claro que, como se trata de uma análise literária, a verdade passa a ser relativa. Afinal, criticar um livro (ou toda uma obra de um autor) passa por escolhas e experiências muito pessoais, até íntimas, em alguns casos. Por exemplo: um resenhista pode deixar “a emoção falar mais alto”, mas, o crítico, não. Muito embora o crítico possa se dedicar a um autor ou livro por quem ou pelo qual ele tenha uma ligação afetiva, os sentimentos devem ficar de lado, e a razão deve dominar o seu trabalho. Apesar de ser impossível ser imparcial, o crítico precisa ser o menos parcial possível, para que o seu trabalho seja o mais próximo de uma verdade não tão relativa, por assim dizer.
Quais imposições faz a si mesmo?
Acho que a imposição se confunde com a ética. Eu diria que imponho a mim mesmo ser verdadeiro. Aproveito para reforçar que não digo isso no sentido de objetivar impor a minha verdade. O “ser verdadeiro” significa expor a minha opinião mais franca, fruto de um trabalho que envolve bastante leitura e escrita.
Quais os princípios de trabalho com os quais não transige?
Com quaisquer interesses que não estejam ligados a um trabalho isento, correto, verdadeiro.
Qual a qualidade básica no trabalho do crítico?
Difícil citar uma qualidade apenas, mas a curiosidade certamente é uma das mais importantes. O crítico precisa ser curioso, questionador. É preciso, também, ser bastante atento, observador, e estar aberto a diálogos e até mesmo a reavaliações de opinião.
Quando o crítico sabe que sua missão está cumprida?
Acredito que, assim como o ficcionista, o crítico sempre vai considerar que seu trabalho está incompleto, por mais acabado que ele pareça estar. Talvez eu seja romântico, mas vejo a crítica como um organismo vivo, que se comunica com várias e várias vertentes do pensamento, e que evolui o tempo inteiro. É difícil, portanto, falar em “missão cumprida”. Se pudéssemos perguntar aos grandes críticos que já nos deixaram, e aqui é inevitável citar Antonio Candido, se eles consideram ter cumprido suas missões, eles diriam que não, e que deixaram muito ainda por fazer.
O que seria um crítico sem doutrina?
Uma impossibilidade, talvez? Ou então um resenhista — e digo isso sem intenção de menosprezar a categoria, afinal, como disse, me considero mais um resenhista que um crítico. Muito embora o resenhista também tenha a sua doutrina, é claro, ela só é menos rigorosa que a do crítico. Mas, enfim, tergiverso. Um crítico sem doutrina é como uma cadeira sem uma das pernas, que pode até se equilibrar por uns segundos, mas qualquer coisinha a faz cair.
Com isso quero dizer que, sem uma doutrina, o crítico pode ter seu trabalho mais facilmente questionado e até refutado. Sem uma doutrina, o trabalho do crítico não é consistente. Portanto, acredito que é preciso seguir alguns preceitos básicos. Cada crítico tem a liberdade de eleger os seus, mas, como disse anteriormente, tentar ser imparcial e verdadeiro são, para mim, pontos fundamentais.