(…) Na época da derrubada de Allende, o Brasil estava tenso pela expectativa das “eleições” que se aproximavam. Sob o regime, os presidentes eram escolhidos pelo Congresso, controlado pelos militares. O dono do Jornal do Brasil, Manuel Francisco do Nascimento Brito, opunha-se a Ernesto Geisel, general que estava entre os candidatos, e sua opinião era conhecida nas altas-rodas. Nos conchavos políticos que levaram à indicação de Geisel, Nascimento apostou no cavalo errado.
Geisel, do Rio Grande do Sul, era filho de um imigrante alemão, e o alemão tinha sido a língua de sua casa na infância. Geisel não era abertamente antissemita e não tinha integralista, mas havia alguns elementos na sua biografia que deixavam os judeus de cenho franzido, tais como seu alinhamento de juventude com o general Álcio Souto, ativo simpatizante nazista. Segundo registros, ele descreveu o professor Eugênio Gudin (que não era judeu) como “este patife do Gudin, que é um salafra, é um judeu sem-vergonha”. Diferentemente do que ocorria com muitos elementos das Forças Armadas brasileiras, que reverenciavam a bravura marcial de Israel, não há nenhum indício de que ele tivesse disposição favorável aos judeus.
A Guerra de Yom Kipur, em outubro de 1973, influenciou o pensamento de Geisel, como fez com tantos outros. (…) A guerra e o novo governo ensejaram uma revolução na política externa brasileira; o país cujo embaixador presidira a votação das Nações Unidas pela criação do Estado de Israel agora lançava seu apoio diplomático às nações árabes.
O Jornal do Brasil, refletindo a orientação tradicional de política externa do Brasil, sempre fora pró-judaico e sionista. Nascimento Brito, seu rico e influente proprietário, era um admirador de Israel; chegara a mandar seu filho para um kibutz em sua primeira viagem para o exterior. Mas negócios eram negócios, e sua indiscreta oposição a Geisel criou a necessidade de um gesto de aproximação ao novo grupo dirigente. Como Samuel Wainer, entre outros, tinha aprendido, o regime militar poderia tornar muito difícil a vida para um magnata da imprensa não cooperativo.
A solução que ele via pela frente era bastante clara: demitir os judeus. Que esse gesto fosse capaz de ter efeito sobre Geisel é sugerido pelo restante do comentário deste sobre o “patife” Eugênio Gudin: “O Globo abre suas páginas todos os dias para Gudin escrever seus disparates”. O Globo era o principal concorrente do Jornal do Brasil no Rio, e um indício do desagrado de Geisel pelo “judeu sem-vergonha” em suas páginas talvez tenha chegado aos ouvidos de Nascimento Brito, sugerindo-lhe uma oportunidade.
Em dezembro Clarice ouviu um rumor de que seria dispensada pelo jornal no final do ano. Em pânico, telefonou para Alberto Dines e Álvaro Pacheco, que ficaram no apartamento dela a maior parte da noite, garantindo que não havia nada a temer, pois se tratava de um mal-entendido. Na manhã seguinte, Alberto Dines, ao acordar, leu a notícia de sua demissão na primeira página de seu próprio jornal.
A razão alegada foi “falta de disciplina”, embora Dines tivesse dirigido o jornal durante anos e nunca tivesse ouvido queixa semelhante. Não foi tudo de uma vez; a “gente dele” foi dispensada uma a uma. “Eu tinha tido o cuidado de não chamar judeus demais, para não ser acusado de favoritismo. E os que contratei eram da mais alta qualidade. Ninguém poderia dizer que Clarice Lispector não merecia estar ali”, disse Dines. “O jornal terminou Judenrein (limpo de judeus, no vocabulário do Holocausto. [N.T.]). Mas eles fizeram a coisa de modo cauteloso o bastante para não dar imediatamente na vista. Nunca disseram isso, mas o resultado era bastante claro. Tipicamente brasileiro.” Nenhum dos góis que ele havia contratado foi despedido.
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