Edições em campanha política

O governador de São Paulo José Serra e o jornal O Estado de S.Paulo têm uma coisa em comum: ambos parecem estar em campanha, ambos pela Presidência, o segundo em defesa do primeiro. Na surdina. Contrapondo o modo pelo qual o Estadão representa Serra ao que usa para figurar Dilma Rousseff, podemos supor uma predileção pelo primeiro. A tendência se enxerga, neste artigo, pelo uso das fotos que ilustram as matérias e pela edição do todo. Poderá haver outras formas de argumentar o mesmo (ou o contrário), mas esse será o nosso meio de interpretação.

Assino o Estadão há mais de um ano, recebendo os jornais às sextas, sábados e domingos. Não posso afirmar nada a respeito da cobertura dos outros quatro dias da semana, portanto. A argumentação a ser desenvolvida também se ressente de algum rigor acadêmico: não tenho uma data precisa de início ou término; as fotos e matérias foram recolhidas durante a leitura cotidiana. Ainda assim, o material acumulado sugere de fato a tese apresentada acima e, sendo assim, é útil termos em mente a possibilidade desse viés tendencioso enquanto lemos o jornal.

As matérias foram recortadas do jornal do 1º de novembro de 2009 até o dia em que escrevo este artigo, sábado de carnaval, 13 de fevereiro. Todas elas estão disponíveis para leitura na internet, porém só algumas trazem as fotos da versão impressa.

De um modo geral, o governador aparece sorridente ou compenetrado, contracenando com objetos vinculados à ideia de atividade ou trabalho. A chefe da Casa Civil surge sempre desatenta, brincalhona, ridícula. Nas fotos aparentemente mais inocentes, também podemos ver certo tipo de ideologia quando atentamos a quem é retratado daquela forma.

Serra-trabalhador, Serra-em-ação, essa imagem é recorrente. Considere todos os objetos em interação. Em 15/01, na matéria ‘Candidato não é chefe da oposição’, o governador encara o leitor, com uma mão retira os óculos, folha de papel na outra, mangas arregaçadas. Já em 24/01, em ‘Oposição descarta propor invenções’, os mesmos elementos se repetem: papel, mangas arregaçadas, agora com um olhar convicto, ‘pra frente’.

Em 30/01, em ‘Serra reage com ironia à cobrança de Bernardo’, temos Serra sorrindo, olho no olho do leitor novamente; atrás dele, no que deve ser uma propaganda institucional, uma garota negra sorri também. A matéria afirma – com aparente opinião direta da repórter, sem justificativa ou histórico – que a referida cobrança do ministro Paulo Bernardo ‘foi mais uma tentativa do PT de trazer Serra para o centro [da disputa eleitoral]’. Porém, Serra está muito acima disso, me diz a repórter: ‘Na contramão dos desejos petistas, Serra tentava ontem mostrar que não distingue os prefeitos pelo partido, levando ao palanque um prefeito do PT. E ouviu um discurso repleto de elogios à sua gestão.’

O citado prefeito, segundo a repórter, parecia mesmo estar fascinado com Serra: ‘[Sérgio Ribeiro] Silva fez questão de esperar o governador, que saíra para atender um telefonema, para começar seu discurso.’ Ainda: ‘Silva listou os investimentos do governo estadual no município e agradeceu a Serra por ajudar a `salvar a cidade´.’ A matéria encerra de maneira simpática, com Serra afirmando que ‘a única cor de camisa que às vezes presto atenção é a do futebol’. Também ficamos informados que ele fez uma enquete sobre que time as pessoas presentes torciam e ‘o Palmeiras, seu clube de coração, ficou em terceiro lugar’.

Em 02/01, a foto complementa ‘Auxiliares de Serra preparam saída do governo’ com um governador de mão no queixo, pensativo. Atrás dele, um painel multicolorido. Para pessoas em complicação, o fotojornalismo costuma usar fundo negro, rosto em sombras. Foi o caso do ministro Fernando Haddad após a fraude no Enem: em ‘Vamos ter a Fuvest do MEC’, de 1º/11, só temos a silhueta do rosto, só iluminado nos contornos. Outro exemplo: em 23/08, na matéria ‘Reforma vira pesadelo de Obama’, o presidente americano, de braços cruzados, está contra um fundo preto onde se vêem alguns vultos. Se as cores têm esse significado, isso tudo parece dizer subliminarmente: Serra não está em complicações.

E em 6 e 18/12, respectivamente nas matérias ‘Mudança climática deixou de ser assunto de ambientalista’ e ‘Decisivo, Aécio pode ser vice com mais poder’, Serra é retratado tendo como fundo a bandeira de São Paulo. Não encontrei nenhuma matéria em que o presidente, por exemplo, ou o prefeito Kassab, estivessem à frente de bandeiras. Só em 9/01 encontra-se Marina Silva na mesma mise-en-scène.

Já com Dilma é outra história. A corroborar o ideário que se criou de que a chefe da Casa Civil seria autoritária e repressiva, temos, em 27/12, ‘Dilma defenderá Estado forte para embalar `novo desenvolvimentismo´’. A ministra, com expressão raivosa, encara o leitor de dedo em riste. Pesquisando quais outros indivíduos eram retratados de ‘dedo em riste’ (um gesto com um significado claro socialmente, de ‘por o dedo na cara’, ou similar), descobre-se que Hugo Chávez, em duas ocasiões (‘Chávez incita atrito entre estudantes’, 30/01; e ‘Holanda desmente acusações de Chávez e exige explicações’, 19/12), é representado assim. O senador Valdir Raupp, suspeito de desvio de verbas em Rondônia, está da mesma forma, em ‘Raupp perde no julgamento, mas STF adia decisão’ (19/12).

Em 23/01, temos a Dilma desatenta e tola. A matéria ‘Gracejos de Serra, Dilma e Lula contrastam com semana de conflito’ é ilustrada por uma foto em que Serra está sentado no canto direito, Lula se curva a ele dizendo alguma coisa, enquanto a ministra segura o óculos com a boca, mordendo uma das pontas, olhando para o outro lado. Em outras matérias, ela é brincalhona: ‘Comparar `incomoda´ tucanos, diz Dilma’. Ela parece se divertir com um leque que lhe cobre um dos olhos. A legenda registra que Dilma disse: ‘Nunca o Brasil, quando eles governaram, cresceu e distribuiu renda’ – mas que peso a foto deixa atribuir à declaração? Em 01/11, ela tem os olhos no direção da chamada e parece bater palmas; ‘PT molda Dilma pela cartilha de Lula’, diz o título.

E, em 30/01, em ‘Dilma faz campanha mesmo sem presidente’ (fora a opinião explícita logo no título: ela só faz campanha política com Lula), a foto mostra a ministra com fones de ouvido, interagindo com um boneco do personagem do jogo God of War. O jogo trata de um guerreiro mercenário contratado por alguns deuses. Seria exagero pensar que a escolha justamente dessa foto não faça referência a outro ideário em torno de Dilma, da sua atuação com grupos terroristas no período da ditadura militar?

A ordem das matérias nas páginas pode indicar o mesmo tipo de argumentação. No dia 19/01, o primeiro caderno abre a seção ‘Nacional’ com uma entrevista de Fernando Henrique Cardoso: ‘Chapa puro-sangue do PSDB reflete `sentimento nacional´, defende FHC’. Isso, na página A4. Como a contrariar quaisquer dúvidas que surgissem das afirmações do nosso ex-presidente, a A6 abre com ‘Dilma vai à TV, mas não sobe indica Vox Populi’ e, no olho, destaca: ‘Presidente do instituto avalia que candidatura do PT `tem problemas´’. Mas, para uma análise mais exata disso, seriam necessários outros exemplos de que não disponho.

No domingo, depois que terminei o artigo, o Estadão publicou uma matéria sobre ambos os candidatos no carnaval. ‘Candidatos pegam carona na folia’ colocava a foto dos dois lado a lado – e eu posso estar vendo significado demais, mas quem é fotografado no ato de por a coroa (da fantasia carnavalesca) é Serra, enquanto Dilma, como sempre, só sorri. No site, a única foto que aparece é a primeira.

Os exemplos citados são suficientes para afirmar, senão que existe tendência deliberada de defender o governador de São Paulo, que O Estado de S. Paulo tratou em muitos momentos os dois presidenciáveis de maneira consideravelmente diferente.

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Publicado no Observatório de Imprensa. Veja o original e acesse outros textos meus no OI.

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