Julio Daio, do Digestivo Cultural

Publicado originalmente na revista Capitu, antecessora da Úrsula


Julio Daio Borges, 35, é o criador do Digestivo Cultural, um dos mais importantes sites de jornalismo cultural da internet brasileira. Recente, o Digestivo alcançou a marca de um milhão de pageviews mensais. Borges é colunista da revista GV-Executivo, da FGV/SP e do site Operamundi.net; já publicou, por exemplo, no Caderno 2, do Estado de S.Paulo; no Prosa e Verso, de O Globo; no jornal literário Rascunho, entre outros. Além disso, fornece consultoria para projetos em internet, com vistas a aumentar visitação e fortalecer a marca. Em entrevista à Capitu, ele fala sobre o funcionamento do Digestivo — quem é o público, como lida com a publicidade e com estatísticas, quais as diretrizes de seus textos — assim como do jornalismo cultural em si, com críticas às grandes publicações do meio brasileiro e indicações das leituras que crê valerem a pena hoje.

Borges faz uma análise do cenário das atuais e das possíveis publicações: ‘todas as revistas culturais, em papel, tem problemas ou são abertamente deficitárias’. Ao lado disso, dá uma amostra da consistência dos conselhos que oferece como consultor: ‘Quem acompanha os principais sites e blogs dos Estados Unidos, por exemplo, tem a chance de antecipar tendências. No Brasil, os profissionais de mídia ficam esperando; mas, quando entram, já não há diferencial algum’. O conteúdo da entrevista acaba por transcender o interesse de jornalistas, estudantes de jornalismo ou aspirantes a críticos de cultura, podendo atingir os leitores comuns — que enxergarão os mecanismos por detrás das publicações que leem.

A entrevista foi feita por e-mail.

Capitu — Vocês ainda pretendem lançar uma revista impressa?

Julio Daio Borges — Tivemos a experiência da revista com a GV-executivo, mas concluímos, antes disso, que não compensaria financeiramente. Todas as revistas culturais, em papel, têm problemas ou são abertamente deficitárias. As que continuam ou estão sob o guarda-chuva de uma grande editora, que têm outras revistas que compensam o prejuízo; ou são mantidas pelo governo ou por uma instituição, que acredita na iniciativa a ponto de mantê-la mesmo dando prejuízo; ou, ainda, são meros caprichos de seus donos, que têm outra atividade paralela, o que permite à publicação existir, porque a bancam de seu próprio bolso. Nós não queríamos repetir nenhuma dessas histórias… sem contar que as publicações em papel, culturais ou não, seguem minguando, apesar do fim da crise, no mundo todo.

Capitu — Acredita que há espaço, público e publicidade que sustentem outras publicações de cultura, seja de forma impressa ou online? No que essas hipotéticas e novas publicações deveriam se focar?

Borges — Em publicações impressas, eu não acredito. Pelas razões que expliquei na pergunta anterior. Acrescentando mais uma: ninguém quer pagar pelo que pode conseguir, de graça, na internet. Quanto às publicações online, eu acredito que possam se desenvolver se fizerem parcerias estratégicas de e-commerce, além da publicidade. O e-commerce é a única coisa líquida e certa na internet. Tirando o Google, que descobriu uma fórmula que não pode ser replicada, a publicidade não é o forte da maioria das iniciativas na internet, mesmo fora do Brasil. Eu buscaria parcerias, como as que temos, com sites como Livraria Cultura, Submarino e MercadoLivre. A publicidade deve ser mais representativa nos próximos anos no nosso País, mas, por enquanto, continua perdendo para o e-commerce…

Capitu — Qual sua opinião sobre as publicações de cultura ‘canônicas’ no nosso cenário, a saber, Bravo!Cult, cadernos Ilustrada e Caderno 2? Quais seriam seus acertos? E quais seriam seus erros?

Borges — Eu gostava mais da Bravo! no começo, na época do Wagner Carelli, da Flávia Rocha e do Michel Laub. Acontece que a revista dava muito prejuízo e, graças a um arranjo familiar, conseguiu ser incorporada à Editora Abril. Mas, se acabou salva financeiramente, editorialmente falando, a Bravo! morreu. Foi diluída, para entrar no ‘padrão Abril’, terminou sem identidade e hoje ninguém sabe quem escreve lá. Como vem fechada dentro de um plástico, não podemos nem folheá-la na banca (para saber como anda)…

Nunca fui leitor assíduo da Cult, mas acho que ela foi importante por se forcar, estritamente, em literatura, no final dos anos 90. Pessoalmente, acho o Manuel da Costa Pinto muito condescendente com a literatura brasileira contemporânea, mas respeito a realização editorial dele na Cult, numa época em que não havia quase internet, sites e blogs literários etc. Depois que o Manuel saiu, até entendi a necessidade da Daisy Bregantini em amplificar o escopo da revista, mas, tirando a fase do Luís Antônio Giron, a Cult se transformou numa ‘prima pobre’ da Bravo!, sobrando algumas entrevistas e alguns dossiês que, às vezes, são bons. (ultimamente, acho que a Daisy têm acertado mais nos cursos [oferecidos pelo Espaço Cult].)

Eu gostaria de acrescentar, embora seja bastante recente, a Piauí, que, a meu ver, é a grande novidade dos últimos tempos, nessa leva de ‘jornalismo literário’ brasileiro. Além de ser incrivelmente bem escrita, não é populista (a Piauí se dá ao luxo de não publicar nenhuma linha sobre a morte do Michael Jackson, por exemplo), e traz notas e reportagens culturais que não encontro em nenhum outro lugar. É, verdadeiramente, indispensável , ao contrário da Veja (que virou commodity) [referência ao mais recente slogan desta última revista]. Quando eu não lia a Piauí, sabia que estava ‘perdendo’ alguma coisa. É raro sentir isso em relação a algum outro periódico do Brasil…

Sabemos que quase metade do nosso público tem entre 20 e 30 anos e que quase um terço dele tem mais de 40 anos; sabemos que o assunto preferido é Literatura, depois Música e Cinema (quase empatados).

Capitu — E quanto aos cadernos de cultura dos jornais?

Borges — Li o Caderno2 durante praticamente toda a minha juventude. Como leitor, foi o que me formou (em termos de jornalismo cultural em papel). Mas confesso que esperava mais da volta do Daniel Piza ao Estadão, como editor-executivo, em 2000 (mesmo ano em que eu fundei o Digestivo). Tudo bem que, no final da década de 90, eu praticamente abria o Caderno2 só para ler o Paulo Francis, mas, mesmo assim, esperava que o Daniel implementasse a mesma revolução que ocorreu no Caderno Fim de Semana, da Gazeta Mercantil, durante a sua ‘gestão’ como editor (1996-2000). Claro que a responsabilidade não é apenas dele, mas todas as atenções, naquele momento, estavam sobre ele…

Hoje acho o Caderno2 e a Ilustrada muito dependentes da ‘agenda’, dos press-releases e das assessorias de imprensa. Talvez porque as estruturas das redações de publicações em papel tenham diminuído a ponto de um ‘assessor’ influente emplacar mais pautas que um editor oficialmente designado. É preocupante, ainda, que uma única pessoa cuide de uma editoria importante quase sozinha. Por exemplo, no Caderno2, o Lauro Lisboa Garcia escrevendo quase tudo sobre ‘música’, o Luiz Carlos Merten, quase tudo sobre ‘cinema’ e o Ubiratan Brasil, quase tudo sobre ‘livros’. Depois de um tempo assim, é impossível um jornalista não se repetir, e o leitor se desinteressa, porque já sabe o que vai ler…

Capitu — O que acha da cobertura de cultura feita pela blogosfera? Consistente, promissora? Que blogs e sites (ou publicações impressas que não citei acima) você indica?

Borges — Na internet, por incrível que pareça, eu sigo mais pessoas que veículos. E leio muita coisa da internet em língua inglesa, que, para quem empreende na internet (em qualquer língua), é, ainda, a principal fonte. Quem acompanha os principais sites e blogs dos Estados Unidos, por exemplo, tem a chance de antecipar tendências no Brasil. O Twitter, digamos… Eu venho batendo na tecla do microblog há meses, com alguns outros blogueiros brasileiros que leem em inglês, mas o resto da mídia só veio atrás quando um número significativo de pessoas pareceu aderir. Ou seja: no Brasil, os profissionais de mídia ficam esperando; mas, quando entram, já não há diferencial algum…

Voltando à sua pergunta, eu leio o TechCrunch, que assino via Twitter. E o Mike Arrington, também. Sei que eles publicaram uma grande bobagem, recente, sobre o Brasil, mas é onde se discute as principais iniciativas da internet mundial, de 2005 pra cá (Web 2.0). Gosto, ainda, do Jason Calacanis, que é ‘empreendedor em série’ (nem tudo que ele faz dá certo, mas tem sempre bons insights). Do Scobleizer, pesco alguma coisa. Às vezes me soa muito técnico, mas, em geral, é uma referência, porque ele testa novidades sem parar. Já li mais o Seth Godin (prefiro ele em livros). E ultimamente tenho lido o Mark Cuban, que é um bilionário com ideias claras e que escreve direito.

E eu ouço podcasts. Meus preferidos são o IT Conversations e o TED (que entrega o áudio das famosas palestras direto no seu MP3 player). O primeiro agrega outros podcasts de tecnologia, como o Stack Overflow, do Joel Spolsky, e o Interviews with Innovators, do Jon Udell. Gosto de ouvir, ainda, o Gillmor Gang, que reúne a nata da internet dos EUA: além de Steve Gillmor, Mike Arrington, Robert Scoble e Jason Calacanis, que eu já citei, inclui o Doc Searls (), o Dan Farber (CNET) e o Hugh MacLeod.

Como funciona o Digestivo Cultural

Capitu — Pode-se definir quem é o público do Digestivo Cultural, gostos, preferências, classe, escolaridade? Ou, de forma mais geral, quem é o público de publicações culturais? A quem esse tipo de produto atinge?

Uma pergunta semelhante a de cima foi feita já, a sua resposta foi:

É um leitor jovem, mas não muito jovem, de nível universitário pra cima, porque tem de gostar de ler (os textos são longos para o ‘padrão’ da internet). Há, tambem, uma geração acima da nossa, de meia-idade pra frente, mas que costuma se irritar quando lembramos que os meios físicos, que eles tanto prezam vão acabar (…)

Mas falo de uma compreensão mais exata de quem é esse público; vocês realizam algum tipo de pesquisa para defini-lo? Você sabe, revistas como as da Abril tem estatísticas e tabelas para informarem publicitários em geral. Há esse tipo de informação?

Borges — O que temos de dados colocamos na nossa página de ‘Audiência’. Sabemos, por exemplo, que quase metade do nosso público tem entre 20 e 30 anos e que quase um terço dele tem mais de 40 anos, por isso falamos das ‘duas faixas etárias’ em outras entrevistas. Sabemos, ainda, que o assunto preferido é Literatura, depois Música e Cinema (quase empatados). Sabemos, também, que a seção do site mais acessada é a de Comentários, em seguida a de Colunas e o Blog.

Já fizemos mais ‘pesquisas qualitativas’, perguntando diretamente aos assinantes da nossa Newsletter, principalmente em Promoções. Mas, hoje, preferimos ser menos ‘invasivos’ e procuramos usar os números de que dispomos através dos nossos relatórios, que, graças a ferramentas como o Google Analytics, estão cada vez mais sofisticados. Em breve, também, teremos um ‘ad server’ rodando, de forma que teremos todas as ‘quebras’ possíveis através do número IP de quem nos acessa. O parceiro que está nos proporcionando isso diz que, além de países e regiões do Brasil, teremos idade e sexo do internauta/leitor.

Capitu — Pergunta paralela. A preocupação de ser um ‘produto definido’, de dizer quem atinge e como, parece ser uma carência da mídia mais antiga — revistas e jornais — e não aos sites, com sistemas como o adsense que direcionam as propagandas. Existe, no Digestivo, essa preocupação?

Borges Existe porque ninguém vive de AdSense. O AdSense, tanto para nós quanto para todos os outros sites, é um complemento. Precisamos desses dados porque as agências de publicidade, que vendem o grosso da propaganda na internet, precisam saber (e os clientes delas; e os nossos, também). Tecnologicamente falando, acho que vamos chegar a esse ponto, em que os dados virão automaticamente. Mas, até lá, é preciso combinar pesquisas qualitativas (o mínimo) com pesquisas quantitativas (Locaweb, no nosso caso; mais uma ferramenta própria; mais, recentemente, o Google Analytics). Esperamos, sinceramente, que o ad server seja mais preciso e menos invasivo, para entregar dados sempre melhores aos nossos parceiros e anunciantes.

Capitu — Também paralela, mas abordando por outro lado: existe uma linha editorial para os textos do Digestivo? Alguma orientação que guie a admissão de novos textos, a seleção de colunistas? A Bravo!, por exemplo, se esforça em destacar uma ideia para reflexão nas pautas dela; existe algo desse tipo na sugestão de pautas e seleção de artigos para o seu site?

Borges — O mais perto que chegamos disso é a nossa seção de perguntas e respostas para novos Colaboradores. Tem de ser, primeiramente, jornalismo cultural. Esporte, política e mesmo educação não pegamos, porque, se pegarmos, acabamos saindo da nossa especialidade. Pegamos literatura, música, cinema, teatro, artes plásticas, até gastronomia e internet. Mas não pegamos ficção, por exemplo; tem de ser jornalismo. Já a escolha dos Colaboradores se dá pela qualidade do texto. Pode parecer uma avaliação subjetiva, mas funciona porque o site, há anos, parece que atrai, sozinho, os Colaboradores certos. Atualmente, quem decide pelo que vamos publicar (dos novos Colaboradores) sou eu e o nosso editor-assistente, Rafael Rodrigues.

Uma vez que a pessoa entra no site (colabora sucessivas vezes e vai ganhando a nossa confiança), ela recebe um login e uma senha, para cadastrar, diretamente, novos textos. Aí a pauta continua sendo jornalismo cultural, mas não obrigamos ninguém a escrever sobre nada em específico. O único compromisso é que a pessoa cadastre um texto por mês, para ser considerada ‘Colunista’. (E há as pautas dos Especiais, mas, novamente, são sugestões, não são ‘obrigatórias’.)

Capitu — O Digestivo parece se centrar, até onde eu vi, em artigos opinativos, resenhas e críticas. Existe a vontade de abranger outros tipos de texto usados na área cultural, como o perfil, a reportagem, a crônica, etc?

Borges — O perfil aparece, às vezes, nos Ensaios (como neste caso), e, mais indiretamente, nas Entrevistas (como neste caso). Reportagens aparecem, mais sutilmente, no Blog (como neste caso recente e também neste outro). Crônicas são as colunas da Ana Elisa Ribeiro (entre outras). Mas não ambicionamos criar ‘seções’ especificas para cada caso, porque, como o site foi estruturado em cima do ‘jornalismo colaborativo’, fica difícil manter esses formatos todos regularmente (através de colaboradores). O que chega para nós, na maioria das vezes, são textos opinativos (que, aliás, são o grosso da internet). Outros formatos surgem espontaneamente, ou ficam por minha conta, como as Entrevistas (afinal, eu vivo disso).

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